domingo, 9 de outubro de 2011

16. autobiografia

Mas dizer isto é dizer quase nada. O que vou lendo sobre essa época, e o que ela representou na história literária portuguesa, é por via da regra tolice. Tolice ou má-fé. Instalou-se na nossa cena uma espécie de bando arrogante, de uma ligeireza patética, capaz de varrer com um único gesto uma geração ou uma centúria. Para trás deles, é o vácuo; à frente ou aos lados, uns autodeclarados génios, que eles servem ou desservem consoante os seus humores de pistoleiros sem lei. É um feio mundo, o das letras, onde tudo tem um preço. Detestam-se as pessoas sem as conhecer, detestam-se as obras sem as ler. Mas, ainda que lessem, sabe-se que nenhum livro resiste a uma leitura malévola. Há o juízo enfadado, displicente ou sobranceiro, há o emotivo, o rigoroso e o irónico – e há o vil, em que se deturpa intencionalmente o que se leu. Não sei se todos os escritores têm experiência disso. Mas alguns, por isto ou por aquilo mais na mira da perversidade, com certeza que têm. Não é altura de evocar factos que estão na origem de tantos dos combates da geração do Novo Cancioneiro; estive dentro de alguns, de outros participei. Apenas quero referir-me a um cunho indelével: a amizade, que juntou modos de ser tão dessemelhantes como João José Cochofel, Carlos de Oliveira, João Gaspar da Costa, Joaquim Namorado, uns tanto mais, e que, mesmo quando as interferências parasitárias a fizeram turvar, persistiu até à hora da verdade, que é quase sempre a final.



Fernando Namora, in Autobiografia (Lisboa, 1987)

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